terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O Pornosamba – Contundência crítica, poética e anti-musical

CRÍTICA
por Evill Rebouças[i]

Geralmente quando se produz teatro musical no Brasil, a busca pela virtuosidade do cantar, bem como os aparatos técnicos (entre eles, microfones sem fio e caixas amplificadas), se sobrepõem à teatralidade. Isso pode ser conferido em boa escala nas produções exportadas da Broadway para o Brasil. O belting – técnica norte-americana para se alcançar uma das excelências no canto – nunca foi tão apreciado e exigido como nos dias de hoje, pois em algumas dessas produções não se exporta apenas a dramaturgia, mas um conjunto de modelos estéticos, entre eles, a cópia exata da técnica de canto, do cenário, do figurino, da luz. Necessário também um staff de profissionais nos bastidores, dada a grandiosidade das produções e, consequentemente, põe-se no palco e na coxia uma espécie de franchising, tal qual o Mcdonald´s. Paradoxalmente, quanto mais esses espetáculos se aproximam do formato original, mais frequentados e ovacionados são.

O pornosamba e a bossa nova metafísica, espetáculo produzido pelo Teatro do Incêndio, com dramaturgia e direção de Marcelo Marcus Fonseca, vai pela contramão das experiências citadas e de tantas outras que se aproximam ao show ou se isentam de construir discurso crítico. Aqui, o grupo cria poéticas a partir da precariedade para expor irônica crítica aos modelos vigentes de musicais. Os atores, acompanhados por banda ao vivo e com instrumentos amplificados, cantam no gogó e quando há microfone, este é utilizado para outra função. A personagem de Carmen Miranda, desempenhada de modo soberbo e aurático por Gabriela Morato, dupla playbacks. Concebível esse recurso para um “musical modelo” ou tal escolha é uma crítica a atual indústria fonográfica, na qual maquia vozes para vender bundas? Numa das cenas mais poéticas do espetáculo, Carmen – aquela que voltou americanizada - toma pílulas e morre, tendo ao fundo a gravação de um mix de choros de Villa Lobos, para posteriormente ser coberta por nomes de magistrais compositores brasileiros.  Mas para que não paire dúvida sobre a virtuose vocal de Gabriela Morato, ela em vez de dublar também canta Recadinho de papai noel, de Assis Valente, quando a performance ao vivo se faz necessária à cena.

A dramaturgia de Pornosamba é fragmentada. Como boa parte de textos criados a partir de experimentos em cena, o resultado é uma tessitura repleta de humanidades, pois explora e se adequa aos perfis dos profissionais envolvidos, além de abrir um leque para leituras múltiplas. É o espectador quem irá construir os sentidos para as situações mostradas, mas Fonseca desenha amarração para os fragmentos: seria a memória da morta Carmen Miranda ou os devaneios, oriundos dos hilários porres de Vinícius de Morais que fazem chegar ao palco as situações mostradas? Por meio desse expediente desfilam pela passarela do Teatro do Incêndio ícones que criavam e cantavam o samba e a bossa nova de outrora: Assis Valente, Noel Rosa, Ary Barroso, Cartola, Candeia, Araci de Almeida, Nara Leão, Maísa, Dolores Duran, Elis Regina, Baden Powell, Tom Jobim, João Gilberto, Madame Satã, entre tantos outros. Para os mais velhos, facilmente se reconhece algumas dessas personalidades sem precisar chama-las pelo nome ou caracterizá-las mimeticamente. Carmen ou Elis, por exemplo, são facilmente reconhecíveis pelos trejeitos de braços e mãos, ou Noel com sua incessável e grotesca tosse. Para aqueles que jamais ouviram falar dessas personalidades, o dramaturgo utiliza o recurso de chamar alguns deles pelo apelido ou pelo primeiro nome. Mais informações? Só dando uma “googada”, pois o espetáculo não está a serviço do didático, mas da reflexão.

De todas as encenações assinadas por Marcelo Marcus Fonseca, esta é a mais madura e pungente. Existe um equilíbrio entre poética e crítica – não subsidiada pela palavra, mas essencialmente pela riqueza de imagens. Absolutamente poético caracterizar Elis com as narinas sangrando e momentos depois a cantora se dirigir a uma bandeja de pó; ver Carmen atravessando a passarela com roupa fúnebre, gestos minimalistas e maquiagem que sublinha sua boca, qual ventríloquo; ou ver a cabeça de Nara Leão sendo enfaixada com gases estampadas de sangue, apenas informando que o seu tumor estourou. Nenhuma palavra ou julgamento sobre as situações, apenas imagens que subsidiam leituras e críticas múltiplas.

Os recursos surrealistas presentes na luz, a qual deixa parte do rosto dos intérpretes sombreados, bem como as maquiagens e adereços grotescos possibilitam contrapontos e diferentes modos de recepção: distanciar-se e pensar sobre, ou, a inevitável comoção contida diante de imagens tão avassaladoras.  Num outro momento ilustres artistas mortos caminham sobre lixo reciclável; eis outra imagem que reforça a crítica sobre o descarte, o capitalismo fonográfico e seus desdobramentos.  Fonseca flerta e oferece também possibilidades de experiência (no sentido Bondiano) ao espectador, pois em dado momento, parte da plateia deita-se sobre as ondas de uma praia. Inevitável não fechar os olhos, seja pela luz dos refletores que incide sobre a nossa visão ou pela sonoridade de Tarde em Itapuã.


Durante a apresentação de Pornosamba me lembrei de dois espetáculos do festejado grupo francês Ex Machina, dirigido por Robert Lepage. O que tem a ver uma coisa com outra? Tudo e nada! Nas duas montagens de Jogos de carta (subdivididas em Copas e Espada) existe um exército de contra-regras escondidos sob uma plataforma para fazer brotar espetacularidades. Mas, paradoxalmente, em um destes espetáculos o grupo crítica o capitalismo e utilizam maquinário e mão de obra que custam milhões e milhões. No caso de Pornosamba, não houve recursos financeiros para a montagem, não há espetacularidade e quando se faz necessário trazer um objeto para a cena, isso é transformado em poética: simultaneamente a uma cena principal, os objetos são colocados no palco como se atores/contra-regras deslizassem no tempo, saíssem da memória daquele que executa a cena principal, sem necessariamente essas ações coincidirem com os conteúdos daquilo que está em foco.

Lembrei-me também de Cabeça de papelão, musical escrito por Ana Roxo e dirigido por Kleber Montanheiro. Como em Pornosamba, o espetáculo da Cia. da Revista fugia do padrão musical brasileiro, pois em ambos os casos se exploram as qualidades de atores que cantam e, essencialmente, a construção de poéticas críticas. Para ouvidos e olhos padronizados, não recomendo Pornosamba; para pessoas desejantes de reflexão, é indispensável passar por experiência cruel, incompleta e tocante.

[1] Evill Rebouças é um dos fundadores da Cia. Artehúmus de Teatro. Dramaturgo, diretor, ator e orientador de artes cênicas.  Graduado em artes cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp. Publicou A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional, livro resultante de sua pesquisa de mestrado.

Musical: O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica
Teatro do Incêndio. Rua da Consolação, 1219. Tele: (11) 2609-8561
Temporada: sábados às 21h e domingos às 20h - Até 14/12
Ingressos: R$ 40,00 (meia: R$ 20,00) – Bilheteria 2h antes da sessão
Duração: 80 min. Classificação: 16 anos.

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