CRÍTICA
por Evill Rebouças[i]
Geralmente quando se produz teatro musical no Brasil,
a busca pela virtuosidade do cantar, bem como os aparatos técnicos (entre eles,
microfones sem fio e caixas amplificadas), se sobrepõem à teatralidade. Isso
pode ser conferido em boa escala nas produções exportadas da Broadway para o Brasil. O belting – técnica norte-americana para
se alcançar uma das excelências no canto – nunca foi tão apreciado e exigido
como nos dias de hoje, pois em algumas dessas produções não se exporta apenas a
dramaturgia, mas um conjunto de modelos estéticos, entre eles, a cópia exata da
técnica de canto, do cenário, do figurino, da luz. Necessário também um staff de profissionais nos bastidores,
dada a grandiosidade das produções e, consequentemente, põe-se no palco e na
coxia uma espécie de franchising, tal
qual o Mcdonald´s. Paradoxalmente, quanto mais esses espetáculos se aproximam
do formato original, mais frequentados e ovacionados são.
O pornosamba e a bossa nova metafísica, espetáculo produzido pelo Teatro do Incêndio, com
dramaturgia e direção de Marcelo Marcus Fonseca, vai pela contramão das
experiências citadas e de tantas outras que se aproximam ao show ou se isentam
de construir discurso crítico. Aqui, o grupo cria poéticas a partir da precariedade
para expor irônica crítica aos modelos vigentes de musicais. Os atores,
acompanhados por banda ao vivo e com instrumentos amplificados, cantam no gogó
e quando há microfone, este é utilizado para outra função. A personagem de
Carmen Miranda, desempenhada de modo soberbo e aurático por Gabriela Morato,
dupla playbacks. Concebível esse
recurso para um “musical modelo” ou tal escolha é uma crítica a atual indústria
fonográfica, na qual maquia vozes para vender bundas? Numa das cenas mais
poéticas do espetáculo, Carmen – aquela que voltou americanizada - toma pílulas
e morre, tendo ao fundo a gravação de um mix
de choros de Villa Lobos, para posteriormente ser coberta por nomes de
magistrais compositores brasileiros. Mas
para que não paire dúvida sobre a virtuose vocal de Gabriela Morato, ela em vez
de dublar também canta Recadinho de papai
noel, de Assis Valente, quando a performance ao vivo se faz necessária à
cena.
A dramaturgia de Pornosamba
é fragmentada. Como boa parte de textos criados a partir de experimentos em
cena, o resultado é uma tessitura repleta de humanidades, pois explora e se
adequa aos perfis dos profissionais envolvidos, além de abrir um leque para
leituras múltiplas. É o espectador quem irá construir os sentidos para as
situações mostradas, mas Fonseca desenha amarração para os fragmentos: seria a
memória da morta Carmen Miranda ou os devaneios, oriundos dos hilários porres
de Vinícius de Morais que fazem chegar ao palco as situações mostradas? Por
meio desse expediente desfilam pela passarela do Teatro do Incêndio ícones que
criavam e cantavam o samba e a bossa nova de outrora: Assis Valente, Noel Rosa,
Ary Barroso, Cartola, Candeia, Araci de Almeida, Nara Leão, Maísa, Dolores
Duran, Elis Regina, Baden Powell, Tom Jobim, João Gilberto, Madame Satã, entre
tantos outros. Para os mais velhos, facilmente se reconhece algumas dessas
personalidades sem precisar chama-las pelo nome ou caracterizá-las
mimeticamente. Carmen ou Elis, por exemplo, são facilmente reconhecíveis pelos
trejeitos de braços e mãos, ou Noel com sua incessável e grotesca tosse. Para
aqueles que jamais ouviram falar dessas personalidades, o dramaturgo utiliza o
recurso de chamar alguns deles pelo apelido ou pelo primeiro nome. Mais
informações? Só dando uma “googada”, pois o espetáculo não está a serviço do
didático, mas da reflexão.
De todas as encenações assinadas por Marcelo Marcus
Fonseca, esta é a mais madura e pungente. Existe um equilíbrio entre poética e
crítica – não subsidiada pela palavra, mas essencialmente pela riqueza de
imagens. Absolutamente poético caracterizar Elis com as narinas sangrando e
momentos depois a cantora se dirigir a uma bandeja de pó; ver Carmen
atravessando a passarela com roupa fúnebre, gestos minimalistas e maquiagem que
sublinha sua boca, qual ventríloquo; ou ver a cabeça de Nara Leão sendo
enfaixada com gases estampadas de sangue, apenas informando que o seu tumor
estourou. Nenhuma palavra ou julgamento sobre as situações, apenas imagens que
subsidiam leituras e críticas múltiplas.
Os recursos surrealistas presentes na luz, a qual
deixa parte do rosto dos intérpretes sombreados, bem como as maquiagens e
adereços grotescos possibilitam contrapontos e diferentes modos de recepção:
distanciar-se e pensar sobre, ou, a inevitável comoção contida diante de
imagens tão avassaladoras. Num outro
momento ilustres artistas mortos caminham sobre lixo reciclável; eis outra
imagem que reforça a crítica sobre o descarte, o capitalismo fonográfico e seus
desdobramentos. Fonseca flerta e oferece
também possibilidades de experiência (no sentido Bondiano) ao espectador, pois
em dado momento, parte da plateia deita-se sobre as ondas de uma praia.
Inevitável não fechar os olhos, seja pela luz dos refletores que incide sobre a
nossa visão ou pela sonoridade de Tarde
em Itapuã.
Durante a apresentação de Pornosamba me lembrei de dois espetáculos do festejado grupo
francês Ex Machina, dirigido por Robert Lepage. O que tem a ver uma coisa com
outra? Tudo e nada! Nas duas montagens de Jogos
de carta (subdivididas em
Copas e Espada ) existe um exército de contra-regras
escondidos sob uma plataforma para fazer brotar espetacularidades. Mas,
paradoxalmente, em um destes espetáculos o grupo crítica o capitalismo e
utilizam maquinário e mão de obra que custam milhões e milhões. No caso de Pornosamba, não houve recursos
financeiros para a montagem, não há espetacularidade e quando se faz necessário
trazer um objeto para a cena, isso é transformado em poética: simultaneamente a
uma cena principal, os objetos são colocados no palco como se
atores/contra-regras deslizassem no tempo, saíssem da memória daquele que
executa a cena principal, sem necessariamente essas ações coincidirem com os
conteúdos daquilo que está em foco.
Lembrei-me também de Cabeça de papelão, musical escrito por Ana Roxo e dirigido por
Kleber Montanheiro. Como em Pornosamba,
o espetáculo da Cia. da Revista fugia do padrão musical brasileiro, pois em
ambos os casos se exploram as qualidades de atores que cantam e,
essencialmente, a construção de poéticas críticas. Para ouvidos e olhos
padronizados, não recomendo Pornosamba;
para pessoas desejantes de reflexão, é indispensável passar por experiência
cruel, incompleta e tocante.
[1] Evill Rebouças é um dos fundadores da Cia. Artehúmus
de Teatro. Dramaturgo, diretor, ator e orientador de artes cênicas. Graduado em artes cênicas pelo Instituto de
Artes da Unesp. Publicou A dramaturgia e
a encenação no espaço não convencional, livro resultante de sua pesquisa de
mestrado.
Musical: O Pornosamba e a Bossa Nova
Metafísica
Teatro do Incêndio. Rua
da Consolação, 1219. Tele: (11) 2609-8561
Ingressos: R$ 40,00
(meia: R$ 20,00) – Bilheteria 2h antes da sessão
Duração: 80 min. Classificação:
16 anos.
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