CRÍTICA
Por Evill Rebouças
Fotos: Giulia Martins |
O novo espetáculo do Teatro do Incêndio, com
texto e direção de Marcelo Marcus Fonseca, se chama A gente submersa. São
pessoas comuns, facilmente encontradas e encravadas nos rincões desse país, e
por estarem tão escondidas alguns teimam em não enxergá-las. Elas existem, mas
há algo que as encobrem - o que as encobrem? Essa é uma das inúmeras perguntas
que latejam em nossa mente durante e ao final da peça – que em mim permaneceu
por horas, dias, depois da celebração ali acontecida.
São vinte artistas em cena; e você paga quanto
puder – graças aos incentivos recebidos pelo Teatro do Incêndio, via Lei de
Fomento ao Teatro; no entanto, o atual governo municipal teima, insiste,
articula com o demônio se preciso for, para que a lei não seja cumprida. São
vinte artistas que transformam o palco num caleidoscópio que nos atinge e nos
leva à experiência: o cheiro das ervas, os coros, as danças populares, as
músicas, o entra e sai de cenas, o rabicho de uma cena que permanece enquanto
outra nasce. Multifacetado. Justamente para que as partes sejam articuladas (ou
não) pelo espectador.
O fio condutor dessa experiência são três
personagens, centenárias e juvenis em espírito, que buscam um lugar no mundo.
Não ocupam, e sim tateiam o mundo, de tão singelas, de tão longínquas paragens.
No entanto, para além de paradigmas de quem vive ancorado nas riquezas da
sabedoria popular, a peça coloca em discussão reflexões profundas, dentre elas,
as camadas socioculturais, políticas e éticas que encobrem determinadas gentes.
Por que elas existem? O que as fazem ser tão mais fortes que as pessoas? Quem
está por trás dessas camadas e por que elas engendram a permanência de sujeitos
à margem? De modo poético, Marcelo Marcus Fonseca viabiliza o dialético em
contundente poesia: os invisíveis ocupam lugar de protagonismo no espetáculo.
À margem! O teatro sempre esteve à margem! As
pessoas de teatro também. Quando penso em algo à margem no teatro, o primeiro
nome que me salta é Jorge Andrade (1922-1984), um autor com obras de imenso
valor – e para quem gosta da chamada dramaturgia de carpintaria, ele talvez
seja o nosso maior representante. O que comentar sobre Vereda da salvação, o
que não ressoa em nós ao vermos Rastro atrás? Na primeira peça encontramos a
perfeita condução e construção da linearidade; na outra o abuso da manipulação
do tempo por meio das fragmentações – recurso arrojado demais para sua época.
Até quando ele escreveu obras em período curto e por encomenda, produziu pérolas.
A receita – uma das peças curtas escritas para a última edição da Feira
Paulista de Opinião – é sublime; pode ser montada em qualquer tempo e em
qualquer lugar que haverá comunicação e discurso plenos.
Pois bem, a obra de Jorge Andrade foi
simplesmente colocada à margem, foi sucumbida. Mas por quê? Por que no teatro,
assim como na vida, há imensos e dolorosos espaços
guetificados. Em sua época, uma parte da crítica só tinha olhos para o não menos importante Nelson Rodrigues. Ação tão dominante e totalitarista, capitaneada pela crítica especializada e pela a academia, que põe Jorge Andrade à margem.
guetificados. Em sua época, uma parte da crítica só tinha olhos para o não menos importante Nelson Rodrigues. Ação tão dominante e totalitarista, capitaneada pela crítica especializada e pela a academia, que põe Jorge Andrade à margem.
Ainda que não vejamos a história de um autor
relegado em A gente submersa, podemos localizar esse tipo de perversão. São
atos praticados, às vezes de modo consciente e inconsciente, que fazem
desaparecer obras, pessoas. Infelizmente aquilo praticado contra a obra de
Andrade ocorre ainda hoje e em larga escala. Comum vermos na cena paulistana
determinado crítico eleger alguém como o encenador da década; comissões que
premiam os mesmos artistas; selecionadores que indicam os mesmos espetáculos
para mostras, festivais - ainda que essas montagens tenham sido praticamente
rechaçadas unanimemente enquanto poética, discurso e comunicação por outras
cabeças pensantes que não a crítica e a academia aliadas ao artista ou grupo.
Temos, assim, a implantação do pleno exercício da exclusão.
A gente submersa faz a gente pensar em tudo
isso. Faz a gente pensar em gente simples, em gente com diploma, em artista, em
gente que tem espaço para inibir a visibilidade do outro. Tempos perversos.
Tempos em que podemos espetacularizar nossos gostos – e eles podem atingir
status de política de exclusão.
Preocupo-me com essa gente nova que nasce e
luta todo dia para ser artista numa cidade em que o atual “gestor” não sanciona
a Lei Pagu, ao alegar mentirosamente que o município tem programas suficientes
para contemplar a demanda dos teatreiros. Terá esse povo – novo, mediano, velho
– espaço para fazer viver a sua arte? Espaço? Necessário falar do novo espaço
do Teatro do Incêndio: um triângulo branqueado por fora que se abre e
convida-nos para entrar. Por dentro, o triângulo tem cores escuras, porém,
branqueado pela luz dos atuantes – gente que mesmo submersa a determinadas
políticas governamentais e civis do teatro paulistano, atua e demarca território,
porque ali é um terreiro de luz, terreiro de entrega, é lugar de celebração.
Espaço construído em troca de outro espaço! Seu proprietário vendeu seu
apartamento de residência, ficou sem teto próprio, para comprar esse lugar de
arte!
Pergunto-me quantos sujeitos, desses que
elegem os “melhores” do teatro paulistano, irão ver A gente submersa. Quantos
já foram ver as peças do Teatro do Incêndio? Possível contar nos dedos? Se não
forem dessa vez perderão muito. Trata-se de obra que atinge a nossa alma, que
toca, que abre fendas, que mexe com qualquer sujeito, em qualquer época, e em
qualquer lugar – tal qual aquele dramaturgo preterido de outrora. Hoje, 2017.
São vinte artistas que, embora vivam numa cidade em que o prefake adota
políticas que aumentam o número de gentes submersas, lutam para fazer arte necessária,
pois falam sobre essas camadas, esses fenômenos que nos colocam despercebidos,
encobertos, escondidos, à margem!
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