Considerado
o mais brilhante cartunista de sua geração, Henfil (1944-1988)
tem seu último livro – “Como se faz
humor político” - relançado pela Editora
Kuarup, 30 anos depois da primeira edição. A obra é uma entrevista de Henrique
de Souza Filho, o Henfil, concedida ao jornalista e crítico musical Tárik de Souza, que continua pertinente
ao momento político atual.
O livro revela os detalhes do ofício desse
craque do humor político brasileiro que criou personagens clássicos, como os
Fradinhos e a Graúna. Seu relançamento coincide com o aniversário de 70 anos de
nascimento do humorista e traz prefácio assinado pelo jornalista e escritor Sérgio Augusto.
Em 1984, a Editora Vozes, em parceria com o IBASE (Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas), encomendou a Henfil um livro com o título “Como
se faz humor político”, para integrar a Coleção
Fazer. Sempre muito atarefado, ao invés de redigir o texto, convidou o jornalista
e amigo Tárik de Souza para entrevistá-lo sobre o assunto em questão. Tárik
conta que já havia entrevistado o cartunista várias vezes, sendo “quase um
especialista na função”.
“Gravador ligado, o
que rola neste livro é quase um improviso jazzístico. Não houve pauta, nem
quaisquer perguntas combinadas previamente. Saímos tabelando sem deixar a bola
cair até o final - que aconteceu exatamente como está no texto. O trabalho de
edição foi mínimo: o que saiu do gravador já era o livro. Não fiquei surpreso
ao reler “Como se faz humor político” 30 anos depois, e encontrá-lo ainda denso
e pertinente. Em parte, porque mudam os nomes, circunstâncias e as mazelas
continuam suplantando as virtudes humanas. Mas na maior parte, porque o Henfil
é craque. E sua arte - e o modo de fazê-la - atemporal.” Escreveu Tárik na
apresentação do livro.
Título: “Como
se faz humor político”
Autor: Henfil
Depoimento a Tárik de Souza
Editora: Kuarup - www.kuarup.com.br
Número de
páginas: 128. Tamanho: 15 x 23 cm. Peso: 185 g
Edição: 1ª (reedição). Ano de lançamento: 2014
Preço de face: R$ 38,00 (trinta e oito reais)
O
MOLEQUE ENGAJADO – prefácio, por Sérgio Augusto
Já me perguntei mais de uma vez e
não me canso de repetir: o que estaria fazendo hoje o inquieto Henrique de
Souza Filho? Se em pleno gozo de suas faculdades físicas e mentais, o setentão
Henfil — o mais singular, brilhante, moleque e engajado cartunista de sua
geração —, provavelmente estaria atirando em todas as direções, testando as
mídias disponíveis; quem sabe confinado a um site na internet onde pudesse dar
vazão ao seu humor malicioso, anárquico, raivoso, grotesco – e politicamente
incorreto pelos padrões de hoje?
Infelizmente, não podemos senão
imaginar o tratamento que suas charges, seus cartuns e quadrinhos teriam dado à
eleição direta para presidente no Brasil (pela qual tanto lutou), à Guerra do
Golfo, à invasão do Iraque e demais desatinos cometidos pelos dois Bush, ao
desgoverno Collor, à queda do Muro de Berlim, à ascensão de Lula e Obama à
Presidência, à histeria em torno do bug do milênio, à montante evangélica, à
praga do celular, ao processo do mensalão, ao desperdício de dinheiro público
para atender ao “padrão Fifa”, à instalação das upps nas favelas cariocas, ao
estrago causado pelos vazamentos do WikiLeaks, aos protestos de rua de 2013 –
eventos, fenômenos e epifenômenos que ele, morto há 25 anos, não pôde
acompanhar, celebrar ou, como era mais do seu feitio, escrachar.
Que novos personagens teria criado?
E quais dos antigos teria abandonado? Os Fradinhos? A Graúna? (Esta, jamais.
Prodígio de design minimalista, pouco mais que um ponto de exclamação, nenhuma
outra figura criada por ele superou-a em argúcia, empatia e popularidade.)
Desconfio que ele, só de molecagem, teria rebatizado O Preto que Ri de O
Afrodescendente que Ri e arrumado outro tipo de paranoico para pôr no lugar do
Ubaldo – um petista envergonhado com o partido que ajudara a fundar, por
exemplo. Desconfio também que, apesar de mineiro e decepcionado com o PT,
Henfil não teria votado em Aécio.
De todas as suas criações, nenhuma,
a meu ver, superou a turma da caatinga, formada por um cangaceiro beberrão e
machista (Zeferino), um bode intelectual (Orelana), uma graúna (ou melhor, a
Graúna) e uma onça anarquista (Glorinha). Num árido cenário de Glauber
Rocha - solo crestado pelo sol inclemente, vez por outra adornado por um cacto
solitário e o resto de uma ossada - Henfil montou um cordel gráfico
astuciosamente subversivo sobre as mazelas do Brasil: a indústria da seca, a
desigualdade social, o mandonismo latifundiário, o fundo falso do milagre
econômico patrocinado pela ditadura, a censura, a opressão masculina, o
crescimento parasitário do Sul Maravilha, e o que mais se prestasse à sátira, à
paródia, à alegoria.
Sua criação mais polêmica, porém,
foi o metropolitano Cabôco Mamadô. Misto de exu e babalorixá, ele comandava o
Cemitério dos Mortos-Vivos, onde só enterrava pessoas que a imprevidência
divina ainda mantinha vivas. Impedido de confrontar diretamente os donos do
poder concentrou sua ira naqueles que de algum modo serviam ou haviam servido
ao regime militar. Antes de enterrar seus mortos-vivos, entregava-os à sanha de
um Tamanduá (“a besta do apocalipse que assola nosso torrão”), que se
alimentava de cérebros humanos, chupando-os implacavelmente: “Xuip!”. O cantor
Wilson Simonal inaugurou a mórbida e pândega sucção. Outras vítimas: Nelson
Rodrigues, Gustavo Corção, o animador de TV Flávio Cavalcanti. Até Roberto
Carlos teve o miolo chupado.
Para Caetano Veloso sobrou a
Patrulha Odara. Contraponto às patrulhas ideológicas, não deixava em paz quem
fechasse os olhos ou desse mole para os abusos da ditadura, quem, enfim,
ficasse “odara”, neologismo inventado por Caetano Veloso, que Henfil entendia
como um convite à abstinência política, para ele, não o maior, mas o único
pecado.
HENFIL – perfil,
por Tárik de Souza
Mesmo sob a artilharia pesada da
ditadura, foi o indômito mineiro Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988)
o desenhista que mais dialogou politicamente com as massas, a ponto de
transformar-se num raro popstar, num ramo onde poucos sobressaem por trás das
pranchetas e (hoje) computadores. No tempo em que os estádios, a preços
razoáveis, superlotavam e as torcidas ainda digladiavam-se dentro de limites
civilizados, seus personagens futebolísticos como o Urubu (Flamengo), Bacalhau
(Vasco), Cri-Cri (Botafogo) Pó-pó (Fluminense) foram adotados em substituição aos Popeyes
e outros símbolos importados anteriores.
No jornal carioca O
Dia, Henfil lançou o personagem Orelhão, que além de servir-se do aparelho de
rua mais acessível na era pré-celular, operava como uma espécie de ouvidor das
causas populares. Egresso da Juventude Católica e um dos fundadores do PT,
Henfil também colaborou intensamente (e de graça, claro) em publicações sindicais.
Mas sua projeção nacional ocorreu através do estouro do
semanário Pasquim, onde se tornou um dos principais impulsionadores de vendas
com sua galeria de personagens agressivos, politizados, humanistas e
iconoclastas.
A dupla dialética de
Fradins, o “Cumprido” (baseado em seu amigo, o jornalista mineiro Humberto
Pereira) reprimido e conservador e “Baixinho” (um indisfarçável auto-retrato),
um sádico libertário, nasceram ainda na Belo Horizonte, onde se formou emigrado
da periférica Ribeirão das Neves. Na revista Alterosas, o desenhista de
bonequinhos pornográficos da oficina, foi compelido a criar personagens, já que
o diretor achava seu traço parecido com o do francês Bosc. Mais tarde, o
comparariam ao ativista Wolinski, mas o fato é que Henfil desenvolveu um percurso
único. Limitado fisicamente pela hemofilia, como seus irmãos, o sociólogo
Betinho (imortalizado em “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir
Blanc), que o influenciou politicamente, e o violonista e compositor Francisco
Mário (“Terra”, “Revolta dos palhaços”, “Pijama de seda”), que realizava seu
lado musical, ele lutava contra dores diárias. E fazia periódicas transfusões
de sangue, que acabariam custando-lhe a vida. O início da epidemia de AIDS
desnudou mais uma tragédia da péssima administração da medicina no país, a
falta de fiscalização da qualidade do sangue, que acabaria decretando a
sentença de morte dos irmãos Souza.
Além dos Fradinhos,
protagonistas de uma revista periódica independente de larga tiragem, Henfil
criou o cangaceiro Zeferino (publicado inicialmente no Jornal do Brasil),
moldado na figura bonachona e um tanto coronelesca do pai, um livre atirador
que ocupou diversos cargos, de diretor de penitenciária a agente funerário.
Havia ainda o Bode Orellana, o intelectual da tira, que ele ironizava sem dó,
inspirado no arisco cantador erudito baiano Elomar. A Graúna, era a personagem
feminina da trama, que oscilava entre a submissão e o ativismo. Graficamente,
talvez fosse sua mais genial e sucinta criação: o corpo da ave era pouco mais
que um ponto de exclamação. Ainda no Pasquim, Henfil disparava sua máquina
inventiva sem cessar. Ilustrava uma tira de crítica musical e paria personagens
que operavam como uma espécie de termômetro do momento político, à medida que a
ditadura avançava. Do didático Caboco Mamadô, que no cemitério dos mortos-vivos
enterrava os colaboracionistas, ao Tamanduá Chupador de Cérebros, a Patrulha
Odara (em contraponto às patrulhas ideológicas) e o espinhoso Ubaldo, o
Paranóico. Bolado com o redator destas linhas, que o nomeou num final de
semana, em Arraial do
Cabo , ele surgia em sincronia com o assassinato de nosso
amigo e colega jornalista Wladimir Herzog, o Wlado, nos porões do DOI-CODI
paulistano. A paranóia grassava. E, infelizmente, não era imaginária.
O enorme sucesso de
Henfil também estava associado à sua absurda capacidade de trabalho. E para
cada nova frente aberta ele criava uma linguagem, como ao preencher a página
final da revista Isto É com as “Cartas da Mãe”. Utilizando a foto da própria D.
Maria Souza como uma espécie de escudo, ele desafiava os poderosos da vez,
incluindo o então presidente-general, João Batista Figueiredo, a quem chamava
de primo por conta de um longínquo parentesco. Criou a anárquica TV-Homem,
dentro da TV Mulher, apresentada pela jornalista Marília Gabriela, em plena onipotente Globo.
No teatro, escreveu a “Revista do Henfil”, em parceria com Oswaldo
Mendes , musical com alguns de seus personagens. O ator Paulo
César Pereio ficou com o papel de Bode Orelana, Sonia Mamede encarnou a Graúna,
Rafael de Carvalho ,
Zeferino, e Sergio Ropperto, Ubaldo, o paranóico. Entre a chanchada e o
protesto, a peça teria a trilha lançada em disco. No cinema, dirigiu o não
menos inconformista “Tanga _ Deu no New York Times”, a partir da experiência de
tentar publicar seus quadrinhos nos EUA. Aceitos, a princípio, pelos sindicatos
que os distribuíram para dezenas de jornais, os Fradinhos (The Mad Monks) logo
foram rechaçados pelo conservadorismo da pátria da (estátua da) liberdade, sob
a pecha de “sicks” (doentios).
Mas, de certa forma,
anteciparam os corrosivos e hoje abençoados Simpsons. Das cartas que enviava
para os amigos a partir da matriz, escreveu o livro “Diário de um Cucaracha”
(Editora Record, 1983), do ponto de vista de um subdesenvolvido no chamado
Primeiro Mundo. Da mesma forma, uma viagem à China, ainda comunista e
excomungada pelo regime militar, rendeu outro “best-seller” literário, o
histórico “Henfil na China (antes da Coca-Cola)”. O livro saiu em 1980 pela
Codecri (Comando de Defesa do Crioléu), editora que fundou dentro do Pasquim, e
se tornou propulsora das finanças do jornal. Mais que uma sigla, que os
políticamente corretos poderiam hoje interpretar mal, ao pé da letra, o título
era uma espécie de divisa de quem deu a vida em defesa dos oprimidos - crioléus
de todas as cores, gêneros e credos.
KUARUP
MÚSICA
Criada em 1977, no Rio de Janeiro, a
Kuarup é considerada uma das principais gravadoras independentes do Brasil e
acumulou diversas premiações, incluindo dois Grammy Awards. Especializada em
música brasileira de alta qualidade, o seu acervo concentra a maior coleção de
Villa-Lobos em catálogo no país, além dos principais e mais importantes
trabalhos de choro, música nordestina, caipira e sertaneja, MPB, samba e música
instrumental em geral.
A Kuarup passa a fazer parte do mercado editorial com o
lançamento do livro Os Outubros de Taiguara, obra dedicada ao cantor
mais censurado da MPB.
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