Evill Rebouças, dramaturgo que ao longo da sua
trajetória recebeu várias indicações e prêmios, entre eles, o APCA e o Shell,
lança o livro Como plumas ao vento -
Comme des plumes au vent, publicação em português e francês no mesmo
exemplar, e que aborda o lugar de (não) pertencimento em relação a refugiados. O
evento acontece no dia 7 de dezembro, sábado, na SP Escola de Teatro, às 18
horas.
A peça de teatro ora publicada no livro foi
criada a partir de duas experiências de pesquisas do dramaturgo. A primeira
delas ocorreu, em 2016, quando Evill Rebouças recebeu convite para escrever uma
peça de teatro na sede da companhia francesa Nie Wiem - um galpão fabril em
Chateauvillain, a duas horas de Paris. O desafio foi agregar as experiências anteriores
do dramaturgo no espaço não convencional às arquiteturas do galpão industrial e
seus arredores, tendo como ponto de partida o olhar dos franceses sobre os
refugiados.
A segunda pesquisa ocorreu, em 2018, quando o
dramaturgo recebeu o Prêmio ProAc Editais - Texto de Dramaturgia. Foi mantido o mesmo referencial de pesquisa,
ou seja, os refugiados, porém surge um novo texto a partir das experiências
contadas por congoleses, sírios, haitianos e venezuelanos no Brasil. Assim, a
peça mostra acontecimentos que estão interligados por olhares e culturas
diferentes e complementares, mas tendo o refugiado como centro de investigação.
Serviço
Lançamento
/ noite de autógrafos:
Como plumas ao vento -
Comme des plumes au vent
Autor:
Evill Rebouças / Editora: independente
Dia 7 de dezembro.
Sábado, das 18 às 21h
SP Escola de Teatro (Saguão)
Praça
Franklin Roosevelt, 210 - Consolação
Valor
do livro: R$ 25,00 (cartão crédito e débito)
Contatos autor: (11) 94126 7714 –
evillreboucas@yahoo.com.br
Relato sobre o
processo de criação
(por Evill Rebouças)
Evill Rebouças, por Giovanna Gelan |
O
processo de criação de Como plumas ao
vento está intrinsecamente ligado à escrita e pesquisa de Sonhos & Songes, peça criada para a
Compagnie Nie Wiem, coletivo com sede em Châteauvillain, cidade na região de
Chamoagne-Ardenne, na França.
Escrevi
Sonhos & Songes em 2016, tendo
como partida o olhar dos franceses sobre esses sujeitos que chegam à sua
pátria. Havia também a minha percepção diante da experiência que vivia ali com
os integrantes da Nie Wiem, pois não dominava a língua francesa e em muitos
momentos eu só conseguia me comunicar porque estava à mercê de um tradutor. Foram
quase dois meses de intenso processo de criação na sede da Nie Wiem, um antigo
galpão fabril que recebe o nome de Centro Cultural Simone – Camp d´Entrainement
Artistique. Inicialmente o nome do centro cultural me intrigava, mas foi só
andar um pouco mais por Châteuvillain para ver inúmeras referências a Simone de
Beauvoir – ela e Sartre tinham casa de veraneio na cidade e até hoje o imóvel
se encontra conservado.
Importante
detalhar um pouco mais esse primeiro processo de criação, uma vez que boa parte
das experiências que vivi também está em Como
plumas ao vento. Inicialmente, tínhamos apenas alguns disparos temáticos: o
estrangeiro, o refugiado, o nômade, o viajante, o infortunado, aquele que
acolhe, aquele que expulsa... Disparos, apenas. Sem norte certo, ou melhor, com
infinitas possibilidades de rotas. Como um mar aberto. O que me cabe enquanto
dramaturgo nesse mar de possibilidades? Como criarpoéticas e discursos ao
trabalhar com culturas, línguas, poéticas e formações artísticas tão
diferentes? Resolvo devorar a pluralidade do encontro. Sem me preocupar se a
dramaturgia teria discurso aberto/esgarçado/explodido ou se criaria tessituras
com malhas mais fechadas (ainda que a estrutura fechada não seja bem a minha
“praia” ideológica).
Nesse
processo criativo em que as dramaturgias vão se estabelecendo por meio de um
coletivo, há um pedaço de cada um. Um dia Bénédicte Lavocat – atriz, moradora
de Châteauvillain dispara em nossa roda de discussão: “Los otros pueden venir
em mi casa, pero no estan benvenidos em mi pais” (Os outros podem vir na minha
casa, mas não são bem-vindos em meu país). Toca-me profundamente o incômodo
dela. Intuo. Coloco-me no lugar. Fico matutando.
Outros
pedaços me chegam. Histórias de moradores de Châteauvillain com diferentes
formações e histórias: uma museóloga que, além de administrar um museu local,
conhece intimamente as histórias dos moradores da cidade; uma especialista em
geleias de cereja fabricadas com as frutas de seu quintal; uma ex-prefeita que
também atuou em espetáculos teatrais; um vaqueiro que alimenta seus animais com
produtos orgânicos; e uma senhorinha que mora em uma pousada municipal e
acolhe, geralmente, peregrinos que estão indo em direção ao Caminho de Santiago
de Compostela. Seu nome: Madame Clément. Oitenta e nove anos de encontros e
abandonos, oitenta e nove anos de uma história que parece gritar: “Sou
estrangeira de mim mesma”. Essas são as histórias que me atravessaram e me
levaram para além dos temas inicialmente pensados.
Inúmeras
histórias escutadas nas entrevistas e muitos materiais cênicos que não foram
incluídos em Sonhos & Songes
permanecem vivos. Em convivência com esses “pedaços” vivos me deparo,
rotineiramente, com a realidade dos refugiados em meu país. Nas ruas, as
sonoridades de idiomas estrangeiros passam a habitar nossos ouvidos: são muitos
congoleses, haitianos, sírios, venezuelanos... Quais as diferenças e os
aspectos em comum entre brasileiros e franceses no tratamento dado aos
refugiados? Como unir França e Brasil em
uma nova peça sobre refugiados, sem, necessariamente, localizar ou
universalizar demasiadamente as características de cada cultura? Foi a partir
dessas inquietações que, em 2018, proponho para a Secretaria de Estado da
Cultura de São Paulo, via Programa ProAc Edital de Dramaturgia, a escrita de Como plumas ao vento. O projeto foi
contemplado. Vieram os desafios. Se em
Sonhos & Songes a escrita ocorre a partir do olhar de quem recebe ou
acolhe o refugiado, em Como plumas ao
vento a ideia é ouvir aqueles que chegam a uma pátria que não é a sua.
Não
foi difícil encontrar histórias dilacerantes aqui em meu país. Haitianos que
perderam seus familiares, suas casas, suas plantações de subsistências...
advindos de um país devastado onde o Estado oferece basicamente água, onde não
há iluminação pública, coleta de lixo, gás, escolas ou hospitais públicos –
isso em decorrência do terremoto ocorrido em 2010. Situação idêntica vivem os
congoleses, pois os serviços públicos praticamente inexistem no Congo em função
das inúmeras guerras civis ocorridas em pouco mais de cinquenta anos de
independência. Não diferentes são os relatos dos sírios, mas com um
diferencial: a guerra pode ter matado e expulsado seus parentes, mas seus hábitos
culturais permanecem vivos.
De
todos os entrevistados, os relatos mais contundentes são os dos venezuelanos.
São muitos pais e mães que deixaram suas casas e seus filhos sob o cuidado de
parentes para trabalharem no Brasil e enviarem dinheiro para seus familiares. Um
venezuelano muito jovem me disse que veio para o Brasil porque sua mulher foi
diagnosticada com gravidez de risco e em seu país não havia hospitais públicos
para acolhê-la. O mesmo me contou que ele e ela ficaram dois meses se
alimentado de restos de comidas jogadas no lixo, já que ele não conseguia
arrumar uma colocação de trabalho no Brasil. Outro venezuelano, dessa vez um
senhor de quase sessenta anos de idade, motorista de caminhão, abandonou sua
família e seu lar para trabalhar em qualquer atividade. Vender a casa e trazer
a família para o Brasil é algo impensável, uma vez que aqui ele jamais
conseguirá comprar um barraco de madeira com o dinheiro da venda de sua casa.
São
muitos e muitas, de todas as idades, sem famílias, sem empregos, sem
residências fixas, em busca de alguma colocação em um país que, infelizmente,
vive um momento de extrema vulnerabilidade social, econômica e com políticas
humanísticas inexistentes por parte do atual governo. Histórias difíceis,
histórias parecidas. Como ultrapassar essas repetições e revelar outras
humanidades? Elejo, então, imagens que possam transpor, de modo poético, a
ideia de não pertencimento, de não lugar – um infindável estado de travessia,
estejam os refugiados em solo pátrio ou não.
No entanto, em Como plumas ao
vento, há também situações que remetem ao cômico, ao nonsense. Elas foram inspiradas em relatos que, vez ou outra
provocavam riso: “No Congo eu tive namorada,
aqui é difícil namorar. As brasileiras se acham!”.
Ao
final desses dois processos de criação percebo que os oceanos são apenas
detalhes enquanto fronteira entre Brasil e Congo, e Haiti, e Síria, e
Venezuela, e França... As fronteiras podem ser rompidas, desde que haja
disponibilidade para entrelaces... Nesse
entrelace de histórias e experiências vividas na França e no Brasil, aprendi
muita, muita coisa... Ah! Aprendi também
que na língua francesa não é habitual o sujeito ser oculto. Presentes! Todos
presentes nessa escrita! Que os refugiados, tão presentes na atual realidade em
que vivemos, também possam ser figuras presentes em nossas vidas.
Apresentação do livro
(por Alexandre Mate)
Evill Rebouças (um
grande querido) tem sua vida dedicada ao teatro: como ator, diretor, autor,
pensador... As participações em teatro, antes de nosso contato no Instituto de
Artes da Unesp (onde estudou e formou-se mestre e licenciou-se em Artes
Cênicas), não conheci. Entretanto, sua produção dramatúrgica – desde as
primeiras obras criadas – me foi sendo apresentada pelos anos que se
seguiram... Assim, por intermédio de diversas paletas temáticas experimentadas,
do ponto de vista da forma, suas criações são épicas. De fábulas mais
tradicionais às narrativas mais ligadas aos experimentalismos contemporâneos, o
chão histórico de suas obras é apreensível e funciona como um lócus no qual
todos os tipos de maus tratos são denunciados. Em suas obras, e pelos mais diversos
vieses, Evill “elegeu” representar pessoas – sem possibilidades de escolha – à
margem, em seus processos de andanças diaspóricas pelo mundo. Gente sem lugar!
Como Plumas ao Vento (2019) caracteriza-se
em um texto que, desde seu título, pode ser lido/interpretado de diferentes
formas. O como, na condição de advérbio ou conjunção, pode designar ao
“modo de”, no caso específico: à semelhança de/das plumas (cuja forma concentra
beleza formal, perfeição, leveza etc.) que, arrancadas de uma pele/organismo
original, são levadas, descontroladamente, pela sagacidade e volubilidade dos
ventos. O como do título pode ser tomado, também, na condição de verbo:
declinado no presente, na primeira pessoa do singular, a indicar a ação de
comer... Inúmeras metáforas podem decorrer de, pelo menos, esta dupla
interpretação/interpenetração... A partir daí (do título que, na condição de
isca, deixa algo pendente), a dramaturgia se inicia com uma pergunta/
indagação: O que me separa do outro? Mesmo sem ter a pretensão de responder a
tal questão, a obra leva, em proposição processional, a inúmeros ambientes
heterotópicos em situações distópicas... Gente sem lugar!
Em tese, a obra
atravessa e é atravessada por lugares (in)determinados. Do ar ao mar; do de
dentro ao de fora, inexplicavelmente; do presente ao sem futuro (porque o
passado não mais pode plasmar o agora e o vindouro)... figuras interditadas de
si, pis(ote)adas, trapeiras e em coro (porque não seria apropriado usar aqui o
conceito de personagem), não podem mais nada: nem o para trás, nem o agora, nem
o vindouro, em razão de estes não mais existirem, senão na condição de
linguagem, cujo idioma não tem mais rizoma. Portanto, em estado de sufocamento,
os esboços de gente, brasileira, venezuelana, síria, haitiana, de todas as
Áfricas, châteauvillaines... não tem traduzibilidade.
O conteúdo da obra é
híbrido e repleto de escamas. As cenas, construídas a partir de plumas/penas –
volúveis, como já citado –, referem-se tanto a travesseiros como a punições e
fazem alusão a sufocamentos (in)compreensíveis.
As paisagens abrigam e são atravessadas por imagens e ausências da
História e de histórias. Estados, com detentores de poder – e seus fiéis
capangas-camareiros, e como algo a preparar imensas porções de
quantidades daquilo que não-mais-nunca couberam, e, por isso, repleto por
conjuntos de metáforas absurdas, fúrias (in)controláveis. Gente escafandra, que
constrói travesseiros, mas que neles não pode descansar.
Espetáculo ambientado
em uma desumanizada republiqueta de galinhas, repleta de pilhas de
travesseiros... Espetáculo de dramaturgia atordoante! Dramaturgia que, apesar
dos travesseiros, não promove o sonho, mas o pesadelo: acre e insuportável!
Espetáculo-rito que não responde àquilo que me separa/aparta do outro, nem, tampouco,
àquilo que me separa e me aparta de mim... mesmo. Dramaturgia que expressa
tempos obscuros e fasciscizantes. Dramaturgia em tempos de que falar em árvores
é quase um crime, pois implica no silenciamento de tantas coisas, conforme
vaticinou Brecht. Espetáculo em tempos, como escreveu Vinícius de Moraes, de
“[...] águias acorrentadas pelos pés”. Espetáculo de “[...] tempos de homens
partidos”, como escreveu Drummond. Espetáculo de tempos em que não se sabe,
como escreveu Cecília Meireles, “[...] em que espelho ficou perdida minha
face!?”
Alexandre Mate é
professor da graduação e pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp –
Universidade Estadual Paulista. Pesquisador teatral, autor de textos e livros
sobre teatro.
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