sexta-feira, 3 de novembro de 2017

As Camadas Submersas da Sociedade no novo espetáculo do Teatro do Incêndio

CRÍTICA

Por Evill Rebouças

Fotos: Giulia Martins
O novo espetáculo do Teatro do Incêndio, com texto e direção de Marcelo Marcus Fonseca, se chama A gente submersa. São pessoas comuns, facilmente encontradas e encravadas nos rincões desse país, e por estarem tão escondidas alguns teimam em não enxergá-las. Elas existem, mas há algo que as encobrem - o que as encobrem? Essa é uma das inúmeras perguntas que latejam em nossa mente durante e ao final da peça – que em mim permaneceu por horas, dias, depois da celebração ali acontecida.

São vinte artistas em cena; e você paga quanto puder – graças aos incentivos recebidos pelo Teatro do Incêndio, via Lei de Fomento ao Teatro; no entanto, o atual governo municipal teima, insiste, articula com o demônio se preciso for, para que a lei não seja cumprida. São vinte artistas que transformam o palco num caleidoscópio que nos atinge e nos leva à experiência: o cheiro das ervas, os coros, as danças populares, as músicas, o entra e sai de cenas, o rabicho de uma cena que permanece enquanto outra nasce. Multifacetado. Justamente para que as partes sejam articuladas (ou não) pelo espectador.

O fio condutor dessa experiência são três personagens, centenárias e juvenis em espírito, que buscam um lugar no mundo. Não ocupam, e sim tateiam o mundo, de tão singelas, de tão longínquas paragens. No entanto, para além de paradigmas de quem vive ancorado nas riquezas da sabedoria popular, a peça coloca em discussão reflexões profundas, dentre elas, as camadas socioculturais, políticas e éticas que encobrem determinadas gentes. Por que elas existem? O que as fazem ser tão mais fortes que as pessoas? Quem está por trás dessas camadas e por que elas engendram a permanência de sujeitos à margem? De modo poético, Marcelo Marcus Fonseca viabiliza o dialético em contundente poesia: os invisíveis ocupam lugar de protagonismo no espetáculo.


À margem! O teatro sempre esteve à margem! As pessoas de teatro também. Quando penso em algo à margem no teatro, o primeiro nome que me salta é Jorge Andrade (1922-1984), um autor com obras de imenso valor – e para quem gosta da chamada dramaturgia de carpintaria, ele talvez seja o nosso maior representante. O que comentar sobre Vereda da salvação, o que não ressoa em nós ao vermos Rastro atrás? Na primeira peça encontramos a perfeita condução e construção da linearidade; na outra o abuso da manipulação do tempo por meio das fragmentações – recurso arrojado demais para sua época. Até quando ele escreveu obras em período curto e por encomenda, produziu pérolas. A receita – uma das peças curtas escritas para a última edição da Feira Paulista de Opinião – é sublime; pode ser montada em qualquer tempo e em qualquer lugar que haverá comunicação e discurso plenos.

Pois bem, a obra de Jorge Andrade foi simplesmente colocada à margem, foi sucumbida. Mas por quê? Por que no teatro, assim como na vida, há imensos e dolorosos espaços
guetificados. Em sua época, uma parte da crítica só tinha olhos para o não menos importante Nelson Rodrigues. Ação tão dominante e totalitarista, capitaneada pela crítica especializada e pela a academia, que põe Jorge Andrade à margem.

Ainda que não vejamos a história de um autor relegado em A gente submersa, podemos localizar esse tipo de perversão. São atos praticados, às vezes de modo consciente e inconsciente, que fazem desaparecer obras, pessoas. Infelizmente aquilo praticado contra a obra de Andrade ocorre ainda hoje e em larga escala. Comum vermos na cena paulistana determinado crítico eleger alguém como o encenador da década; comissões que premiam os mesmos artistas; selecionadores que indicam os mesmos espetáculos para mostras, festivais - ainda que essas montagens tenham sido praticamente rechaçadas unanimemente enquanto poética, discurso e comunicação por outras cabeças pensantes que não a crítica e a academia aliadas ao artista ou grupo. Temos, assim, a implantação do pleno exercício da exclusão.


A gente submersa faz a gente pensar em tudo isso. Faz a gente pensar em gente simples, em gente com diploma, em artista, em gente que tem espaço para inibir a visibilidade do outro. Tempos perversos. Tempos em que podemos espetacularizar nossos gostos – e eles podem atingir status de política de exclusão.


Preocupo-me com essa gente nova que nasce e luta todo dia para ser artista numa cidade em que o atual “gestor” não sanciona a Lei Pagu, ao alegar mentirosamente que o município tem programas suficientes para contemplar a demanda dos teatreiros. Terá esse povo – novo, mediano, velho – espaço para fazer viver a sua arte? Espaço? Necessário falar do novo espaço do Teatro do Incêndio: um triângulo branqueado por fora que se abre e convida-nos para entrar. Por dentro, o triângulo tem cores escuras, porém, branqueado pela luz dos atuantes – gente que mesmo submersa a determinadas políticas governamentais e civis do teatro paulistano, atua e demarca território, porque ali é um terreiro de luz, terreiro de entrega, é lugar de celebração. Espaço construído em troca de outro espaço! Seu proprietário vendeu seu apartamento de residência, ficou sem teto próprio, para comprar esse lugar de arte!

Pergunto-me quantos sujeitos, desses que elegem os “melhores” do teatro paulistano, irão ver A gente submersa. Quantos já foram ver as peças do Teatro do Incêndio? Possível contar nos dedos? Se não forem dessa vez perderão muito. Trata-se de obra que atinge a nossa alma, que toca, que abre fendas, que mexe com qualquer sujeito, em qualquer época, e em qualquer lugar – tal qual aquele dramaturgo preterido de outrora. Hoje, 2017. São vinte artistas que, embora vivam numa cidade em que o prefake adota políticas que aumentam o número de gentes submersas, lutam para fazer arte necessária, pois falam sobre essas camadas, esses fenômenos que nos colocam despercebidos, encobertos, escondidos, à margem!

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